Discutir e combater o tráfico humano, conscientizando a população sobre os riscos e perigos de aceitar propostas podem levar para caminhos sem volta. É com este objetivo que as irmãs da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), desenvolvem atividades através da Rede Um Grito Pela Vida. Para entender melhor o trabalho das religiosas, o portal da Arquidiocese de Salvador entrevistou a Ir. Rosa Elena Ciprés Diaz e a Ir. Anajar Fernandes da Silva. Confira!
Portal – Apesar de parecer algo distante, o tráfico de pessoas está muito próximo a cada um de nós e a Igreja não está alheia a isso. Como tem sido a preocupação da Vida Religiosa, nesse sentido?
Ir. Anajar – A questão do tráfico de pessoas parece que não existe, mas está entre nós. E quando a gente vive numa situação de rede, essa rede passa entre nós, nós não percebemos, mas está acontecendo. Então se faz necessário que as pessoas, sobretudo cristãos católicos, se empenhem nessa luta, porque se trata de questão de escravidão e envolve a vida da pessoa, a dignidade, a liberdade. Envolve os valores humanos: a liberdade, a dignidade, a moradia, o transporte, o direito de ir vir. E aí, a Vida Religiosa vendo essa situação tão envolvente, não pode ficar alheia ao que está acontecendo. Quando você vê o bem maior de uma nação, como os jovens e crianças, sendo traficadas, você não pode ficar ausente, alheio, silencioso dentro dessa situação. Eu clamo aos céus. As religiosas são voltadas, realmente, para os jovens, para os pequenos, para os humilhados, para os marginalizados, e nós não podemos ficar alheias a essa situação.
Portal – Como o projeto Talita Kum é desenvolvido?
Ir. Rosa Elena – O projeto é internacional e se chama Thalita Kum, que significa “menina, levanta-te”. Isso já diz a missão da gente. O tráfico, pelas estatísticas, pelos estudos que são feitos, atinge, em sua maioria, as mulheres. São cerca de 75%. Então, isso para nós, mulheres religiosas é muito desafiante porque é uma questão social que a vida religiosa enxergou a nível internacional. O primeiro grito que se ouviu faz tempo, não foi de agora, foi em 2006. Desde este período que começamos a articular uma equipe das superioras, internacional, depois convocamos as conferências de todos os países. E em 2011 se constituiu. E a nossa equipe daqui do Brasil colabora muito para isso. Nós aqui estamos trabalhando como liderança. Essa rede se forma com esse objetivo de ajudar a conscientização e a prevenção do tráfico de pessoas. A Thalita Kum é executada por mais de 600 irmãs, em 22 redes, em 75 países. Aqui em Salvador somos oito irmãs e em nível de regional somos 24. Tentamos ir onde tem foco de tráfico humano, pois queremos atingir esses focos: Vitória da Conquista, Feira de Santana, Eunápolis, Ilhéus, Itabuna, Porto Seguro e Salvador.
Ir. Anajar – a Talita Kum é um organismo matriz e cada país tem uma rede que leva um nome e a nossa é chamada “Rede Um Grito Pela Vida”.
Portal – Como a Rede Um Grito Pela Vida é sustentada?
Ir. Rosa – Nós começamos pedindo colaboração às congregações. Uma forma de colaborar é dispor as irmãs. Congregações de outros países também nos ajudam. Agora que estamos abrindo os olhos, a sensibilização está muito maior, está sendo um alerta. Tratar o ser humano como mercadoria é uma facada muito forte.
Ir. Anajar – Poucas irmãs estão envolvidas ainda porque a questão era muito escondida, mas agora se tornou bastante clara, com um grande número de pessoas. Tráfico de pessoas é o terceiro meio de tráfico que envolve grandes somas de dinheiro e só perde para o tráfico de drogas e de armas. Então, as pessoas não sabiam, mas à medida que foram aparecendo os índices, foi se percebendo. E a sensibilização ainda é pequena porque ninguém acredita que isto, de fato, está acontecendo. Enquanto o tráfico envolve grandes somas de dinheiro, o nosso trabalho envolve muita boa vontade, com empenho e com foco. É o pequeno contra o grande, uma luta de Sansão e Golias.
Portal – A CRB apenas conscientiza as pessoas ou também trabalha em parceria com a Polícia Federal para identificar os focos?
Ir. Rosa – Dentro do nosso trabalho nós também fazemos as parcerias. Nós trabalhamos articulação, políticas públicas e com parcerias, mas tudo isso é com muito cuidado.
Ir. Anajar – Nós trabalhamos por amor e essa questão do tráfico é muito perigosa porque envolve pessoas altamente competentes, tecnologias e pessoas voltadas para a situação de maldade com o ser humano. Envolve política. Elas são, muitas vezes, lentas, e por outro lado a gente percebe que muitas vezes tem muitas pessoas envolvidas nessa questão do ponto de vista do “interesse”. Então, criar as parcerias é, realmente, muito difícil.
Ir. Rosa – O nosso trabalho também é ajudar, conscientizar as mulheres, para que elas possam se reconhecer. A nossa necessidade como rede é, cada vez mais, ir entrando, descobrir onde está a raiz. Já estamos vendo resultados. A gente precisa trabalhar com as mulheres que aceitam sofrer. É muito complicado. Elas acham que nasceram para estar dentro de casa, cozinhando, dando de comer e sofrendo. Se não atingirmos a sociedade isso vai continuar. Já as jovens de hoje querem outras coisas. Muitas querem ser modelos.
Portal – A CRB, aqui em Salvador, já têm algum caso de trabalho com pessoas que passaram pela situação de tráfico humano?
Ir. Rosa – Aqui em Salvador nós ainda não temos nada disso. Aqui no Brasil temos em alguns lugares algumas congregações que já estão ajudando vítimas. Nós tivemos um encontro em novembro, e veio uma pessoa do Sul e lá a vida religiosa já tem um espaço com vítimas e eles estão ajudando com o que precisa. É um trabalho muito perigoso, tem parceria com a polícia para resguardar as mulheres. É uma questão muito delicada.
Ir. Anajar – As vítimas são muito sensibilizadas porque tem a questão do que elas vão dizer, como é que elas vão ser apoiadas. Tem um caso de uma pessoa que deu um depoimento e três dias depois ela apareceu morta. Então tem todo o cuidado de resguardar, de proteger a pessoa porque os aliciadores que estão por trás são muito perigosos.
Portal – A mobilidade dos povos tem colaborado para o tráfico humano, visto que muita gente sai do seu próprio país para trabalhar em outro lugar, em busca de melhores condições?
Ir. Anajar – Sim. Outras questões são a internet, as novelas, os filmes, que podem apresentar para você a possibilidade de uma vida melhor ou mais fácil, com maior rentabilidade, uma vida feliz. Então a partir daí o pessoal se oferece. Sobretudo a questão das nossas dificuldades econômico-sociais. Os países pobres são os que mais ofertam, são de onde saem as pessoas para o tráfico. E também nesses países as pessoas que mais sofrem são as mulheres e as crianças. Além da oferta de emprego, também tem a questão de gênero, o marido que maltrata, que não dá valor para a mulher. Então é o caminho para poder dizer sim, porque o tráfico é também com o consentimento, você diz sim, mas com essa ilusão de que vai haver o favorecimento de uma vida melhor. A globalização, sobretudo, essa possibilidade de você navegar e também visualizar uma vida efetivamente boa, também pode criar desejos na pessoa e pode levar para uma rede negativa, que é o tráfico. São muitas ofertas: agência de casamento, de turismo, de modelo, de trabalho.
Portal – O trabalho da Rede Um Grito Pela Vida ficará mais em evidência agora por conta da Campanha da Fraternidade. Vocês estão preparando alguma iniciativa?
Ir. Rosa – A Campanha da Fraternidade, nós como rede, consideramos uma conquista nossa, porque fizemos um abaixo-assinado. Faz três anos que estamos pedindo esta campanha. E, graças a Deus, nós conseguimos neste ano que é a Copa, porque para nós é como uma preparação também, como uma conscientização que já ajuda na Copa. Os dados que têm saído durante as Copas, desde a África até a Alemanha, os dados que têm saído são coisas horrorosas em questão do tráfico. Então, isso tem sido para nós um trabalho, mas nós tomamos isso também como um trabalho da rede, que foi pedido, foi lutado, foi conquistado. Então, para nós, trabalhar na campanha faz parte do trabalho da rede porque nós lutamos por ele.
Ir Anajar – É um trabalho muito maior, a nível de Igreja, de CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Na verdade, a vida religiosa tem uma dimensão profética. Essa preocupação, tendo visto o que já estava acontecendo, convoca a Igreja toda para que se mobilize nesse momento. É toda uma prevenção para tentar evitar que o mal se torne maior. Eu vejo a Igreja responsável pelo seu rebanho, capaz de sensibilizar o maior número de pessoas. Mínimos convites, os mais bem intencionados, podem trazer por trás deles uma situação muito mais perigosa. Mesmo porque o maior fornecedor de mulheres para a Europa é o Brasil. São mulheres entre 20 e 24 anos, mais adultas. E o grande fornecedor de mulheres para a América Latina também é o Brasil, sobretudo mais jovens, e elas vão pelas fronteiras com facilidade. Então, é preciso prestar atenção no nosso grande potencial como cristão. A Igreja também presta atenção nisso com uma atitude concreta, que é a Campanha da Fraternidade.
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