No dia de hoje – Finados (oficialmente: “Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos”) –, num gesto de carinho inúmeras flores serão depositadas em túmulos e cemitérios de nossas cidades. A lembrança de parentes e amigos, de pessoas que marcaram profundamente nossas vidas e influenciaram nossos passos, se transformarão em saudade. É a saudade que nos leva a recordar e, até mesmo, a reviver infindáveis acontecimentos e rostos e palavras.
A flor será a tentativa de um encontro que sabemos impossível, ao menos da forma que desejaríamos. Será, também, a expressão de nossa homenagem, muito mais importante e significativa do que erguer uma estátua em honra daquelas pessoas que têm lugar especial em nosso coração. A flor será, ainda, a síntese de uma prece, expressão máxima de nossa limitação: voltando-nos para o Senhor da vida, intercedemos por aqueles que ele amou antes mesmo de nós os conhecermos.
Nossa oração neste dia consistirá em colocar nas mãos do Pai as pessoas que amamos. Privados da convivência da mãe ou do amigo, do irmão ou de um velho companheiro de lutas, queremos que essas pessoas participem da vida da Santíssima Trindade. Afinal, fomos criados por Deus para fazer parte eternamente de sua vida divina. Nossa prece, que na celebração eucarística atinge seu ponto máximo, torna-se assim a oferta a Deus de pessoas que nos foram muito queridas.
Esse nosso gesto terá um sentido pleno se foi precedido de igual oferta por parte dessas mesmas pessoas, enquanto estiveram vivas. Não nos esqueçamos: Deus não salva ninguém contra a própria vontade. Anima-nos a certeza de que tal desejo de se oferecer a Deus pode ter-se manifestado tanto ao longo de toda uma vida, numa fidelidade diária, como na hora da morte, de forma clara e decidida, através, inclusive, de formas que só o próprio Deus foi capaz de captar.
Nossa oração, mesmo que feita após a morte de pessoas que amamos, pode ter sido útil para elas ainda em vida: nosso Deus não está sujeito ao tempo e pode ter dado a elas uma graça especial de conversão, levando em conta precisamente a oração que ainda faríamos. Compreende-se, dessa forma, porque não temos o direito de julgar ou condenar alguém: só na eternidade saberemos o que se passou no momento decisivo de cada vida, que pode ter sido breve na duração, mas rico em intensidade. É tão importante esse momento, que a Igreja nos ensina a tê-lo sempre presente em nossas orações. Somos convidados a rezar diariamente à Mãe de Jesus: “Rogai por nós, pecadores, agora, e na hora de nossa morte”. Ela, que esteve atenta à falta de vinho em um casamento, a ponto de interceder a seu Filho para que essa necessidade fosse atendida, quanto não intercederá pela vida eterna de seus filhos, especialmente daqueles que procuraram durante sua vida colocar-se sob sua proteção?
Quando depositarmos nossas flores em um túmulo, que esse nosso gesto seja, portanto, expressão de um compromisso e de uma oração.
Nosso compromisso consistirá em valorizarmos mais a vida – esse dom que o Senhor nos deu e que renova cada dia. Evitemos estragá-la com mesquinharias, desentendimentos ou vaidades. Afinal, “passa a aparência deste mundo” (1Cor 7,31). (Santa Teresa d´Ávila diria: “Tudo passa, só Deus permanece!”). Uma vez que é pouco o tempo que temos para construir o amor, a paz e a justiça, para saciar os famintos e sedentos, para vestir os nus e consolar os tristes, não vale a pena, em termos de eternidade, desperdiçar nossa vida com prazeres e apegos que duram tanto quanto coloridas e fascinantes bolhas de sabão.
Nossa oração poderá ser uma das tantas que a Palavra de Deus coloca à nossa disposição como, por exemplo, os Salmos do Antigo Testamento, ou um dos hinos do Novo Testamento. Poderá ser também aquela que santo Ambrósio, bispo do quarto século, rezou um dia: “Senhor e Deus, não se pode desejar a outros nada melhor do que se deseja a si mesmo. Por isso, suplico-vos: por favor, não me separeis depois da morte daqueles que tão ternamente amei na terra”.
Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil