Os acontecimentos do dia a dia, com suas exigências e apelos, impedem-nos, muitas vezes, de ter clara consciência do sentido último da nossa existência. Corremos, então, o risco de viver em função de problemas imediatos e de novidades, de solicitações que se renovam e de preocupações que se multiplicam a cada instante. Essa luta diária não  faz desaparecer, contudo, nosso desejo de dar unidade a tudo o que pensamos, planejamos e fazemos. Muitos, no entanto, têm dificuldades de conquistar esse objetivo, unificando experiências diferentes e, às vezes, às vezes até antagônicas. O Evangelho nos ensina  que somente o amor é capaz de concretizar o nosso desejo de unidade, pois ele nos possibilita fazer, aqui e agora, a experiência do eterno. Terá Nicodemos compreendido imediatamente as palavras que Jesus lhe disse: “Tanto Deus amou o mundo que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16)? Não sabemos. O certo é que, se ele as compreendeu, fez uma descoberta que deve ter marcado profundamente a sua vida.
O mesmo ocorre hoje quando alguém percebe ter sido chamado a fazer uma experiência que, começando nesta terra, não termina nem com a morte, mas com ela se torna maior. Após a sua conversão,  Santo Agostinho expressou isso com palavras que se tornaram famosas: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti” (Confissões I,1).
Amados desde toda a eternidade pelo Senhor (“Com amor eterno eu te amei” – Jr 31,3), podemos perceber esse amor e lhe dar nossa resposta livre e total, porque o Filho de Deus foi enviado ao nosso encontro “não para julgar e sim para salvar o mundo” (Jo 3,17). O Salvador veio ao encontro também daquelas pessoas que, ao partirem, deixaram mil perguntas sem respostas em nosso coração. Diante de sua morte, sentimos uma vontade imensa de recapitular suas histórias; percebemos, contudo, que isso é impossível, ainda que tivéssemos a colaboração de todos os que as conheceram. Não teríamos uma ideia exata de suas vidas, mesmo que pudéssemos recordar todas as situações que viveram, as inúmeras palavras que proferiram ou se elas próprias tivessem deixado uma autobiografia. Nesse caso, as descrições poderiam ser muitas e belas mas, certamente, não apresentariam o essencial. Só o Pai conhece uma vida de forma completa; só Ele a compreende e tem a exata dimensão dos planos feitos, das alegrias vividas e dos sofrimentos suportados.
Se tivesse dependido de nós, teríamos escolhido, para as pessoas que amamos e perdemos, uma vida sem problemas, sem cruzes nem dor. Em resposta ao carinho que nos deram e às preocupações que tiveram por nós, tudo teríamos feito para que elas tivessem, já em vida, uma alegria completa e uma paz duradoura. Mas, por maior que tenha sido o nosso amor, tudo o que lhes fizemos ou proporcionamos foi passageiro, incompleto e limitado.
“Deus amou tanto o mundo que entregou seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Vida eterna: essa é a retribuição que Deus dá aos que aceitam seu dom, aos que acreditam em Jesus Cristo e o seguem. E se, por vezes, nos chama a participar mais intimamente da Paixão de Jesus, através de sofrimentos que nos deixam surpresos, dá-nos também a graça necessária para suportá-los.
Quando morrem pessoas que eram muito importantes para nós, permanecem suas lembranças e exemplos. Seremos capazes de perceber também o apelo que nasce para que passemos a trabalhar unicamente por valores que nem a traça nem a ferrugem corroem (cf. Mt 6,20)?
Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil

LITURGIA DIÁRIA