Terminada a celebração da santa Missa na Catedral, no dia 8 de setembro p.p., pelos dez anos do falecimento do Cardeal Dom Lucas Moreira Neves, todos se reuniram em torno de seu túmulo, para um momento de oração silenciosa. Alguém, então, leu a frase escrita na lápide: “Passou a existência na busca do rosto radioso e sereno do seu Senhor. Agora o encontrou”.
Na homilia, como presidente da celebração, eu havia destacado que não foi o Cardeal Dom Lucas que escolheu morrer no dia da Natividade de Nossa Senhora. Mas, se tivesse podido escolher o dia de sua morte, creio que consideraria uma graça especial poder terminar os seus dias em uma festa mariana.
Quisesse traçar o perfil biográfico desse Cardeal, eu me sentiria perdido. O que ressaltar? Suas origens mineiras, vindo de uma família profundamente católica? Seu carisma dominicano, que fazia o coração se queimar, na ânsia de dedicar-se à transmissão da verdade? Sua atuação como sacerdote, nas décadas de cinquenta e sessenta, na Ação Católica? Seu interesse pela Pastoral Familiar? Ordenado Bispo, em 1967, dedicou-se particularmente aos leigos, o que certamente levou o Papa Paulo VI a chamá-lo, em 1974, para a Vice-Presidência do Conselho para os Leigos, em Roma. Já o Bem-aventurado Papa João Paulo II o nomeou, cinco anos mais tarde, Secretário da Congregação para os Bispos, cargo que Dom Lucas ocupou por oito anos. Depois – estamos em 1987 –, houve o período de Salvador, que duraria até 1998.

O que ressaltar da passagem do 25º Arcebispo Metropolitano de São Salvador da Bahia por esta terra e Bahia de Todos os Santos? Sua incansável dedicação, apesar das limitações de sua saúde? As congregações e institutos europeus que trouxe para esta Arquidiocese? Seu cuidado com as vocações sacerdotais? O sábio uso que fez dos meios de comunicação? Seus programas de rádio e seus escritos?A importância que deu à evangelização? Sua atuação à frente da CNBB?… Chamado novamente para Roma, tornou-se um auxiliar direto do Bem-aventurado Papa João Paulo II, pois foi colocado à frente da Congregação para os Bispos – um dos cargos mais importantes na Cúria Romana. E o que dizer de sua devoção e estudos sobre Teresinha de Lisieux? Dos títulos que recebeu de diversas universidades e entidades? De sua eleição para a Academia Brasileira de Letras?
Sempre muito ativo, sentiu o quanto as limitações de sua saúde o impediam de fazer o que deveria ser feito. Tendo apresentado ao Papa sua renúncia aos cargos que exercia, recebeu uma bela carta de João Paulo. Nela, entre outras coisas, seu grande amigo, que havia feito questão de visitá-lo aqui em Salvador, em 1991, testemunhava: “Com grande disponibilidade e sem poupar energias, o senhor se prodigalizou no serviço do povo de Deus nas várias funções que lhe foram confiadas, dando sempre prova de grande fidelidade e de alto senso de responsabilidade.”
Naquela manhã de sábado, na Catedral, procuramos, em primeiro lugar, pedir a Deus a paz eterna para esse Seu Filho. Depois, quisemos agradecer ao Senhor por esse pastor que Ele entregou a esta Igreja Particular. Todos nós nos beneficiamos com seus trabalhos, com sua inquietação apostólica e com sua criatividade pastoral.
Numa de suas crônicas, escrita quando celebrava seu jubileu de vida religiosa, Dom Lucas lembrou que, aos 19 anos de idade, quando lhe foi perguntado pelo superior dominicano o que desejava, ele lhe respondeu: “A misericórdia de Deus”. Cinquenta anos depois, testemunhou: “Celebro o jubileu repetindo em silêncio que o importante é a fidelidade, isto é, saber renovar a consagração da autora no ofertório do anoitecer” (“O Ofertório do anoitecer”, in “Memorial de Fogo e outras crônicas”, p. 259).
No longo ofertório que foi a vida do Cardeal Dom Lucas Moreira Neves, essas duas palavras – misericórdia e fidelidade – sintetizaram seus sonhos, suas lutas e a razão de sua dedicação alegre e criativa. Em resposta à sua fidelidade, possa esse nosso irmão cantar as misericórdias de Deus, no encontro que agora é eterno.
Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia – Primaz do Brasil