Dia 11 de outubro passado, o Papa Bento XVI abriu o Ano da Fé. A partir de agora, deve ressoar, na Igreja, um insistente convite para todos os fiéis: o de buscarmos “uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo” [1]. Somos também chamados a celebrar o dom precioso da fé.
Dom Murilo Krieger - o ano da fé As razões para a instituição desse Ano foram basicamente duas:

1ª) Celebrar o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II (1962-1965), uma “grande graça de que se beneficiou a Igreja no século XX”. Ainda estão muito vivas em mim as recordações daquele acontecimento histórico, quando eu tinha 19 anos. Vivia-se uma expectativa: como seria um Concílio? Quais seriam suas consequências? Ele teria na Igreja uma repercussão como a do Concílio de Trento?… Iniciei os estudos teológicos dois meses após o término do Concílio. Como alguns textos aprovados pelo Concílio ainda não haviam sido editados em português, acompanhávamos, com emoção, sua publicação, e os líamos, com grande expectativa. A história de meu sacerdócio e, consequentemente, de meu episcopado foram marcadas profundamente pela luz conciliar. As expectativas a respeito do 21º Concílio da História da Igreja foram resumidas pelo Papa que o convocou, João XXIII: Queremos que Maria “nos alcance a graça de entrar na sala conciliar da Basílica de São Pedro como entraram no Cenáculo os Apóstolos e os primeiros discípulos de Jesus: um só coração, uma pulsação única de amor a Cristo e pelas almas, um propósito único de viver e de nos imolarmos pela salvação de cada pessoa e dos povos” (04.10.62). Dia 11 passado, na abertura do Ano da Fé, o Papa Bento XVI lembrou que “O Concílio Vaticano II não quis colocar a fé como tema de um documento específico”. Mesmo assim, como depois lembraria o Papa Paulo VI, o Concílio falou da fé em cada página de seus documentos (cf. Audiência de 08.03.1967). O atual Ano da Fé é proposto em vista da “desertificação” espiritual do mundo. “É o vazio que se espalhou. No entanto, é precisamente a partir da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de crer, sua importância vital para nós, homens e mulheres. No deserto, é possível redescobrir o vlor daquilo que é essencial para a vida; assim sendo, no mundo de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido último da vida (…). E no deserto existe, sobretudo, necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança” (Bento XVI, 11.10.12).

2ª) Comemorar os vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica, aprovado com a finalidade de “ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza da fé”. “O Catecismo da Igreja Católica é oferecido a todo homem que nos pergunte a razão de nossa esperança (cf. 1Pd 3,15) e queira conhecer aquilo em que a Igreja Católica crê” (João Paulo II, na Constituição Apostólica Fidei Depositum, para a publicação do CIC redigido depois do Vaticano II).

3ª)Ao longo deste Ano da Fé, que se encerrará no dia 24 de novembro do próximo ano, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, seremos convidados.

(1º) a intensificar uma ampla reflexão sobre a fé, “para ajudar todos os fiéis em Cristo a se tornarem mais conscientes e a revigorarem sua adesão ao Evangelho”;

(2º) a confessar a fé no Senhor Ressuscitado, em nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, em nossas casas e no meio de nossas famílias, “para que cada um sinta fortemente a exigência de conhecer melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de sempre”; e

(3º) a descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada.

4. Mas, o que é a Fé? Não há uma resposta que consiga abranger todas as suas riquezas. Entre as definições que o Catecismo da Igreja Católica nos dá, escolho esta: “A fé é a resposta do homem a Deus que se revela e a ele se doa, trazendo ao mesmo tempo uma luz superabundante ao homem em busca do sentido último de sua vida” (n. 26).

– A fé é a respostasupõe, pois, que Alguém tenha se dirigido a nós, antes. Deus é que toma a iniciativa da salvação. Ele nos amou primeiro. Aqui está a originalidade do cristianismo.

– Resposta a Deus que se revela(Houaiss: primeiro sentido de “revelar” = tirar o véu; deixar-se ver; mostrar-se; manifestar-se). Deus nos mostra sua intimidade. Fez isso, antes de tudo, com um Povo que escolheu, através de pessoas que chamou, consagrou e enviou (AT); fez isso, sobretudo, por Jesus Cristo.

– Resposta a Deus que se revela e se doaDeus quer entrar em comunhão conosco; a comunhão é o fruto da doaçãomútua. Deus se doa na Criação e na Salvação; doa-se enviando Seu Filho: “Tanto Deus amou o mundo…”

– Trazendo ao mesmo tempo uma luz superabundante ao homem em busca do sentido último de sua vida. Deus não nos acompanha de longe, para conhecer nossa resposta a seu amor: Ele nos ilumina. A função do Espírito Santo é de nos recordar tudo o que Jesus nos ensinou. Recordar, aqui, não é apenas lembrar: é agir, transformar, santificar.

5. A fé nos mostra, pois, não só quanto somos importantes para Deus, mas também quanto Deus é importante para nós. Sem Deus, o que acontece em nossa vida? Prevalece o egoísmo sobre a solidariedade e o amor; prevalecem as coisas materiais sobre os valores; prevalece o ter sobre o ser. Quanto mais nos voltarmos para Deus, mais nos tornamos humanos. Com Deus, a esperança permanece sempre. Com a fé, percebemos jamais estar sozinhos; afinal, Deus entrou em nossa vida e nos acompanha.

6. Os obstáculos à fé podem estar no interior da Igreja (uma fé vivida de forma passiva e particular; uma separação entre fé e vida); ou fora dela: a secularização, o consumismo, o hedonismo…

7. O Ano da Fé vai procurar reacender em nós o fogo da origem da Igreja, deixando-nos invadir pelo ardor da pregação apostólica de Pentecostes. Prejudicam muito a Igreja a indiferença, a falta de entusiasmo e as incoerências dos cristãos.

8. O núcleo central da fé cristã é Jesus Cristo; é sua Boa Nova, também para o homem contemporâneo. A vocação fundamental da Igreja é justamente a de anunciar a Boa Nova que recebeu e que vive. Para evangelizar, a Igreja não tem tanto necessidade de renovar suas estratégias, mas de aumentar a qualidade do testemunho dos que são membros da Igreja. À medida que vivermos por Cristo, com Cristo e em Cristo, compreenderemos as razões pelas quais acreditamos e teremos condições de testemunhá-lo àqueles que o procuram de mil maneiras, mesmo que não conheçam seu nome e seu rosto. Essas pessoas perceberão que não anunciamos ou seguimos uma teoria, mas que encontramos em nossa vida uma Pessoa viva, que vive na Igreja e ilumina nossa própria existência. Por isso mesmo, ao longo deste Ano da Fé, deveremos manter o olhar fixo em Jesus Cristo, “autor e consumador da fé” (Hb 12,2). Ele é a resposta aos corações inquietos. Nele tudo encontra plena realização: as alegrias e os sofrimentos, “o perdão diante da ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte”. Ao encontrá-lo, muitos dirão, com Santo Agostinho: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora. Estavas comigo, mas eu não estava contigo!”

9. Bento XVI nos lembra que, nos primeiros séculos do cristianismo, os cristãos eram obrigados a decorar o Credo, que era rezado diariamente por todos, para não se esquecerem dos compromissos assumidos no dia do Batismo; renovavam, assim, continuamente a decisão de viver sempre com o Senhor. Neste Ano da Fé a Igreja quer privilegiar o Símbolo Niceno-Constantinopolitano: Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis.

10. Vemos, pois, que a fé não é somente um ato particular, interior, mas supõe um testemunho e um compromisso público: “Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida. Também o homem contemporâneo pode sentir de novo a necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a nele crer e a beber em sua fonte, de onde jorra água viva”

11. Os Apóstolos, um dia, depois de terem ouvido uma pregação de Jesus, na qual o Mestre insistia na necessidade de perdoar sempre, pediram-lhe: “Aumenta a nossa fé!” (Lc 17,5). Eles haviam percebido que somente na fé, dom de Deus, podiam estabelecer uma relação pessoal com ele e colocar em prática seus ensinamentos. Insisto, pois: (1º) evangelizar é levar alguém ao encontro com Jesus Cristo, que nos transforma, nos reúne e nos introduz em uma vida nova; (2º) a fé não é somente uma doutrina, uma sabedoria, um conjunto de regras morais ou uma tradição: ela é um encontro real, uma relação com Jesus Cristo.

12. “Eis o modo como podemos representar este ano da Fé: uma peregrinação nos desertos do mundo contemporâneo, em que se deve levar apenas o que é essencial: nem cajado, nem sacola, nem pão, nem dinheiro, nem duas túnicas – como o Senhor exorta aos Apóstolos ao enviá-los em missão (cf. Lc 9,3), mas sim o Evangelho e a fé da Igreja, dos quais os documentos do Concílio Vaticano II são uma expressão luminosa, assim como é o Catecismo da Igreja Católica, publicado há 20 anos” (Bento XVI, 11.10.12)

13. O Ano da Fé é um convite a nos tornarmos sinais vivos da presença do Ressuscitado no mundo. Ilumine-nos, ao longo desse Ano, as palavras do apóstolo Pedro: “Sem terdes visto o Senhor, vós o amais. Sem que agora o estejais vendo, credes nele. Isto será para vós fonte de alegria inefável e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação”(1Pe 1,8-9). Animemo-nos, pois o Senhor Jesus derrotou o mal e a morte. “Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno”.

 [1]As citações sem identificação são da Carta Apostólica Porta Fidei, do Papa Bento XVI, de 11.10.2011.

Dom Murilo S.R. Krieger, scj

Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil

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