Como se faz por tradição há 190 anos, celebrei, na Catedral Metropolitana de Salvador, na véspera do último 2 de Julho, o solene “Te Deum” (A ti, Deus!”) – ou, como registram nossos dicionários, aportuguesando as palavras do início do famoso hino latino de ação de graças: o “te-déum”. Para iluminar aquela celebração, foi proclamada a passagem do Evangelho de Lucas que se refere à reação da Mãe de Jesus ao comportamento de seu Filho, quando ele tinha doze anos: “Jesus desceu, então, com seus pais para Nazaré, e era-lhes obediente. Sua mãe, porém, conservava no coração todas estas coisas” (Lc 2,51). Lembrei aos presentes, então, que ao reencontrar o seu Filho e ao estabelecer com ele um breve diálogo, Maria não sabia que estava vivendo um momento histórico. O Filho de Deus, depois de cumprida sua missão em relação ao Pai, dava uma extraordinária lição de obediência a Maria e a José. Maria intuiu que algo de grande estava acontecendo. Não queria perder nenhum pormenor daquele momento; desejava, sim, oportunamente, poder reviver aqueles acontecimentos para tirar dele todas as lições possíveis. Por isso, “conservava no coração todas estas coisas”.
Estou certo de que quem vivia na cidade de Salvador, no distante 2 de julho de 1823, não podia imaginar a importância daquele momento. A Bahia e o Nordeste passavam a se integrar ao que hoje chamamos de “Brasil”. (Que pobre seria o Brasil sem essa região! Que pobre seria o Brasil sem a Bahia e, particularmente, sem os baianos!) Para que acontecesse a vitória final da independência, foram necessários, ao menos aqui na Bahia, o derramamento de sangue, a perda de vidas valiosas e o sofrimento de muitos. De algumas pessoas a História guarda o nome e as reverencia. Da maioria, contudo, não se sabe sequer o nome; elas deram sua vida por uma causa da qual não usufruíram, pois não viram brilhar o sol da independência. É grande nossa dívida para com esses irmãos e irmãs, pois eles, com sua dedicação, e com o oferecimento de sua própria vida, ofereceram o testemunho do que ensinou Jesus: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos amigos” .
Nosso Te Deum, naquela manhã, foi um hino de louvor e de agradecimento ao Senhor que despertou, nesses irmãos e irmãs, a capacidade de doação. Naturalmente, esse gesto faz nascer em nós, além do sentimento de louvor e gratidão, o senso de responsabilidade. Os que lutaram para que hoje tenhamos liberdade fizeram a sua parte. É necessário, agora, fazermos a nossa, completando em nossos dias o que falta para que a independência do Brasil atinja todas as pessoas. Afinal, não se pode falar em país independente enquanto houver irmãos que nascem sem esperança, vivem no sofrimento e morrem esquecidos.
O último mês de junho viu surgir no Brasil um grito que parecia sufocado. Multidões foram para as ruas para gritar um basta às injustiças, à indiferença e à corrupção. No coração de nossos jovens e adultos há uma convicção: o Brasil deve dar oportunidades iguais a todos os seus filhos e filhas. E há fundamento nessa convicção: nosso país é privilegiado. Privilegiado por suas riquezas naturais, por suas belezas, por sua cultura e por suas tradições. Fôssemos um país sem recursos e sem possibilidades, seríamos também um país sem esperança. O grito das ruas é uma continuação da inquietação que levou a população de Salvador e da Bahia, 190 anos atrás, a defender seu sonho de um país independente. Com razão o povo desta terra passou a cantar, no Hino do Senhor do Bonfim: “Glória a Ti neste dia de glória, / glória a Ti, Redentor que há cem anos / nossos pais conduziste à vitória / pelos mares e campos baianos”. Sim, glória ao Senhor que desperta em nossos corações o desejo de sonhar com um mundo melhor e mais justo, com um mundo para todos. Esse mundo não cai pronto do céu. O Senhor nos deu inteligência e vontade para fazermos a nossa parte na construção do mundo com que sonhamos. Nisso acreditaram aqueles que viveram o 2 de julho de 1823; nisso acreditamos nós.
Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia – Primaz do Brasil