IMG_1223Na manhã desta quarta-feira (22), o bispo auxiliar da Arquidiocese de São Salvador da Bahia e secretário do Regional Nordeste 3 da Conferência Episcopal dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Gilson Andrade, participou de um debate inter-religioso sobre a intolerância religiosa e a cultura da paz. O encontro fez parte da programação da Semana de Mobilização Científica (SEMOC) da Universidade Católica do Salvador.
Em seu discurso, Dom Gilson ressaltou a importância de discutir tal tema entre as múltiplas religiões. “É um sinal importante do nosso compromisso com a identidade de nossas tradições religiosas e com o diálogo e a cooperação mútua para o bem e a paz da sociedade”, afirmou o bispo.
Leia na íntegra o discurso de Dom Gilson:
TRADIÇÕES RELIGIOSAS, INTOLERÂNCIA E A CULTURA DA PAZ
Saúdo os membros da mesa, juntamente com todos participantes. Agradeço a oportunidade de estar compondo esta mesa que oferece para todos nós a possibilidade de um sentar juntos de tradições religiosas diversas, mas que desejam levar a cabo uma reflexão sobre o legítimo direito à liberdade religiosa e o consequente respeito à coexistência, construindo juntos uma tão desejada cultura da paz.
O fato de estarmos aqui sentados a uma mesma mesa é um sinal importante do nosso compromisso com a identidade de nossas tradições religiosas e com o diálogo e a cooperação mútua para o bem e a paz da sociedade.
Nos últimos anos, em escala mundial, se pôde verificar que o respeito à liberdade religiosa vem sendo comprometido por uma série de causas e assistimos estarrecidos a uma crescente violação dessa liberdade fundamental, que em muitos casos tem chegado ao ponto de uma perseguição aberta.
Em discurso no Encontro com Líderes de outras religiões, em 21 de setembro de 2014, na Albânia, o Papa Francisco lembrou o que S. João Paulo II disse em mensagem dirigida à nação albanesa, em 1993 que “a verdadeira liberdade religiosa protege das tentações da intolerância e do sectarismo, e promove atitudes de diálogo respeitoso e construtivo” (na histórica visita de João Paulo II, à Albânia, 25 de abril de 1993).
A fé cristã reconhece na excitação à violência em nome de Deus a máxima corrupção da religião. O cristianismo chega a esta convicção a partir da revelação da própria intimidade de Deus, que nos chega através de Jesus Cristo, nas Escrituras Sagradas Deus se revela como amor, compaixão, misericórdia, e em seu Filho pede a todos os seus discípulos um amor que supere todo o ódio, uma vez que o próprio Filho na Cruz deteve no seu corpo todo o ódio da humanidade fazendo da sua vida oferta ao Pai.
Por outro lado, penso que a temática abordada nos deve levar ao questionamento acerca das verdadeiras causas da violência que não só acompanha a intolerância religiosa, mas grassa no mundo secularizado também.
Há um sentimento espalhado de falta de compromisso com o ser humano e com a afirmação da sua sacralidade. Há estudos interessantes que demonstram que à crescente secularização da sociedade acompanhou também o aumento da violência. Não será que o tema central que explica as grandes tradições religiosas anda também ele na periferia dos interesses e, como substituto se colocam outros? Qual é o tema central da religião senão o reconhecimento de Deus? Será que o homem e a mulher contemporâneos não estão cedendo à sempre presente tentação da idolatria que também é sempre autolatria, ou seja, a adoração de si mesmo? Quando se absolutiza a vontade própria (o seu pensar, o seu fazer, o seu querer), corre-se o risco de se esquecer do outro. Primeiramente o outro Absoluto que é Deus e, consequentemente, o outro imagem, que é o ser humano.
“Quando se pretende, em nome duma ideologia, expulsar Deus da sociedade, acaba-se adorando ídolos, e bem depressa o próprio homem se sente perdido, a sua dignidade é espezinhada, os seus direitos violados…e desta ferida se gera uma humanidade radicalmente empobrecida, porque fica privada de esperança e de ideais de referimento.”(Papa Francisco, Encontro inter-religioso, Albânia, 21.09.2014)
Aquilo que fazemos aqui hoje, sentados em torno a essa mesa, tem o significado também de buscar superar aquilo que o Papa Francisco tem denunciado como a globalização da indiferença, que é motivada pelo egoísmo e o individualismo tão presentes no clima cultural contemporâneo. Uma autêntica tradição religiosa, de per se, tende à superação dessa visão fechada sobre si, pois compreende o outro na relação com o mistério e, portanto, na sua sacralidade.
Uma mesa como essa, no contexto da SEMOC, pode sugerir para nossas distintas tradições religiosas a pergunta sobre como cada uma delas pode contribuir para superar a intolerância, geradora de tanta violência em nosso meio, oferecendo elementos geradores de uma nova cultura, a cultura da paz?
A partir dessa perspectiva gostaria de oferecer minha contribuição nessa sessão. Como o cristianismo hoje podecontribuir como semente de paz? É evidente que os nossos maiores líderes entenderam que deviam ser promotores de paz, penso, por exemplo, nos Papas que têm jogado um papel fundamental para a construção de uma cultura da paz.
No encontro anteriormente citado, o Papa Francisco indicou três atitudes para promover esta liberdade fundamental, a liberdade religiosa:
1. “A primeira é ver em cada homem e mulher – mesmo naqueles que não pertencem à tradição religiosa própria –, não rivais e menos ainda inimigos, mas irmãos e irmãs.Quem está seguro das próprias convicções não tem necessidade de se impor, de exercer pressões sobre o outro: sabe que a verdade tem a sua própria força de irradiação. No fundo, todos somos peregrinos sobre esta terra e, nesta nossa viagem enquanto anelamos pela verdade e a eternidade, não vivemos como entidades autônomas e autossuficientes – quer se trate de indivíduos, quer de grupos nacionais, culturais ou religiosas – mas dependemos uns dos outros, estamos confiados aos cuidados uns dos outros. Cada tradição religiosa deve conseguir, a partir de dentro, dar-se conta da existência do outro”.
2. “Uma segunda atitude é o compromisso a favor do bem comum. Sempre que a adesão à própria tradição religiosa faz germinar um serviço mais convicto, mais generoso, mais altruísta à sociedade inteira, verifica-se um autêntico exercício e crescimento da liberdade religiosa. Esta apresenta-se, então, não só como um espaço de autonomia legitimamente reivindicado, mas também como uma potencialidade que enriquece a família humana com o seu progressivo exercício. Quanto mais se está ao serviço dos outros, tanto mais se é livre!”
No mesmo discurso Francisco ressaltou a importância de se estar atento com relação a um clima muito presente em nosso tempo como elemento perigoso que ele mesmo chamou de “fantasma”: o relativismo.
Palavras de Francisco: “«tudo é relativo». A este respeito, devemos ter em mente um princípio claro: não se pode dialogar, se não se parte da própria identidade. Sem identidade, não pode haver diálogo. Seria um diálogo-fantasma, um diálogo com os pés no ar: não vale nada. Cada um de nós tem a própria identidade religiosa, é fiel a ela […] Comecemos cada um a partir da própria identidade, não fingindo que temos outra, porque não vale nem ajuda. Isto é relativismo. Aquilo que nos é comum é a estrada da vida, é a vontade de partir da própria identidade para fazer o bem aos irmãos e irmãs. Fazer o bem! E assim, como irmãos, caminhamos juntos. Cada um de nós oferece o testemunho da própria identidade ao outro e dialoga com o outro. Depois, o diálogo pode avançar sobre questões teológicas, mas o que é mais importante e belo é caminhar juntos sem atraiçoar a própria identidade, sem a disfarçar, sem hipocrisia.” (Francisco, Discurso no Encontro com os líderes de outras religiões e outras denominações cristãs, Tirana, 21.09.2014)
Além dessas indicações práticas que correspondem à atuação de todos, a Igreja católica assume um compromisso nas instâncias internacionais em que participa de ter como prioridade a defesa da liberdade religiosa. Cito palavras doCardeal Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, em um Congresso sobre os 40 anos da Conferência de Helsinki, em junho de 2015: “a diplomacia da Santa Sé considera a promoção da liberdade religiosa uma prioridade dos seus compromissos internacionais”. Lembrava também que a diplomacia vaticana “não cessa de recordar à comunidade internacional a necessidade de combater a intolerância e a discriminação contra os cristãos com a mesma determinação que luta contra o ódio relacionado com os membros de outras comunidades religiosas”.
Os que sentamos a esta mesa e os circunstantes, creio eu, estamos todos de acordo que as guerras inter-religiosas e também a guerra contra a religião são totalmente insensatas. Reconhecemos a necessidade de uma mobilização em nível internacional para garantir o direito à liberdade religiosa e coibir toda e qualquer atitude de intolerância, porém estamos também sempre mais convencidos que isso só se alcança a partir de uma nova cultura. Falamos tanto de Direitos atualmente, porém chego a me perguntar se existe uma cultura que garanta o respeito aos autênticos Direitos Humanos? Nos elementos apresentados creio poder o cristianismo apresentar elementos que favoreçam a geração de uma cultura da paz.
D. Gilson Andrade da Silva
Bispo Auxiliar de Salvador

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