Cada cidade – e Salvador não é diferente –é como uma pessoa: tem suas próprias características, seu jeito de ser, sua “alma”. As cidades têm um rosto que todo mundo vê. No caso de Salvador, fazem parte desse rosto suas encostas e ladeiras, suas igrejas seculares, suas ruas estreitas, a Bahia de Todos os Santos, o Elevador Lacerda etc. Mas as cidades têm também uma face escondida, que poucos veem. É o que eu chamo de “cidade invisível”. É preciso prestar muita atenção para conhecer esse lado oculto de cada cidade. Penso, por exemplo, no interior dos hospitais, nas celas dos presídios, nos asilos, em certas moradias. Quem toma conhecimento do que ali acontece? Quem lhes dá importância?
A responsabilidade que eu tenho na Igreja me faz conhecer lugares e situações que poucos já viram. Não me sinto melhor por causa disso; sinto-me, sim, mais responsável por conhecer situações de dor ou de generosidade que quase ninguém vê. Lembro-me, por exemplo, da visita que fiz a um hospital que atende crianças, em Salvador. Criança é sinônimo de vida, de ação, de alegria. Ver, de repente, uma criança com uma grave enfermidade dói no mais profundo do coração. A recordação da visita a um presídio me traz à mente o olhar de encarcerados, procurando razões para ter esperança. Penso agora em alguns idosos cujo asilo visitei, olhando para o horizonte, dando a impressão que de que  nada viam. Recordo-me também, no meio de tudo isso, de mãos que acariciavam, de lábios que proferiam palavras de incentivo, de sorrisos que confortavam. Aqui está um dos lados invisíveis das cidades: o impressionante número de voluntárioss que descobriram que “Há mais alegria em dar do que em receber” (At 20,35). Tais pessoas dedicam uma parte de seu tempo e muito de seu amor  aos que sofrem, como se dissessem a cada um deles:”Você não está sozinho! Você é muito importante!”, acrescentando com o poeta:”Levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima!”
Quando se escreve a história de uma cidade são citados nomes de pessoas importantes, que nela tiveram grande visibilidade. Quando se escolhem nomes para identificar ruas ou escolas, acontece o mesmo. Não que tais pessoas não tenham merecimentos ou não sejam dignas de serem lembradas. Mas a história de uma cidade é escrita principalmente por uma multidão de anônimos, cujos rostos não são conhecidos e, por isso mesmo, não são lembrados. A vida de uma cidade não acontece somente em lugares e situações privilegiadas que, por isso mesmo, são objeto de comentários nas rodas sociais. Há uma rede de amor que se encontra por cima de cada cidade – rede que poderia parecer virtual mas que, na verdade, é bem real. Como nossas cidades seriam mais pobres se não houvesse tantas iniciativas em benefício dos menos favorecidos e tanto cuidado com quem não pode cuidar de si mesmo.    A cidade  invisível é construída por todos nós. Nela, ninguém é mais importante do que os outros. Na linha dos ensinamentos de Jesus Cristo, importante é quem serve, quem volta o seu coração para Deus e, por isso mesmo, abre os braços para acolher os irmãos e as irmãs. Essa cidade invisível feita de amor é uma antecipação da Jerusalém celeste, a cidade para a qual todos caminhamos. Ali, segundo lemos no Apocalipse, não haverá mais choro nem dor. Essa cidade não precisará do sol nem da lua que a iluminem, “pois a glória de Deus é a sua luz e a sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21,23). Sonho? Sim! Mas como é um sonho de Deus, podemos ter certeza: este novo céu e esta nova terra um dia serão realidade. Neles habitarão os que tiverem colaborado na construção de cidades que, como descobrimos aos poucos, não são tão invisíveis assim…
 

Dom Murilo S.R. Krieger, scj

Arcebispo de São Salvador da Bahia

LITURGIA DIÁRIA