Dom João Carlos Petrini*

Configura-se, na sociedade moderna, uma pluralidade de formas familiares que reivindicam reconhecimento e legitimidade social. Sob a onda de reivindicações internas e de pressões internacionais, todas as forças políticas parecem convergir na posição segundo a qual, na sociedade moderna e pluralista cabem todas as formas de agregação e de organização que não ferem o ordenamento jurídico. Por isso, as forças políticas e sociais não colocam em questão a liberdade das pessoas organizarem sua vida privada, inclusive no que diz respeito à dimensão afetiva, da maneira que preferirem. É bastante difuso o consenso sobre a responsabilidade do Estado democrático regulamentar essas agregações para garantir que sejam respeitados os princípios da equidade nas relações e protegidos os direitos das partes mais fracas.
Por outro lado, as diferenças na maneira de se organizar as diversas formas familiares implicam em diferenças nas dinâmicas internas das famílias que terão inevitavelmente implicações para a sociedade. Por exemplo, uma agregação familiar que recusa dar ao vínculo afetivo uma base jurídica porque não tem certeza da sua durabilidade e pretende preservar uma margem de liberdade maior para desfazer com certa facilidade esse mesmo vínculo a qualquer momento, não dá garantias de cuidar de crianças, dos idosos e doentes que venham a fazer parte daquela família. Poderá, então, acontecer que essas agregações, construídas deliberadamente com um grau mais elevado de fragilidade, venham a prejudicar os seus membros mais frágeis podendo, inclusive, implicar num aumento das despesas do Estado no médio prazo, na medida em que este é chamado a intervir em problemas ocasionados por essa maior fragilidade de algumas formas familiares.
O Estado laico que acolhe e protege os membros dessas relações precariamente formuladas, ao mesmo tempo em que dá amparo e proteção jurídica a seus membros, teria razões para favorecer, nas suas políticas públicas, aquelas formas familiares que oferecem maiores garantias de estabilidade e que, portanto, poderão contribuir mais na construção de uma convivência social pacífica, na educação de filhos preparados para uma cidadania proativa.
A família fundada no matrimônio apresenta algumas características que resultam de grande interesse para a esfera pública. Nela, por exemplo, os cônjuges assumem de maneira explícita e pública a responsabilidade recíproca e para com eventuais filhos. As famílias assentadas em matrimônio valorizam a estabilidade e proporcionam coesão social, oferecendo a perspectiva da duração do relacionamento no tempo. Eventuais rupturas nesses vínculos não suprimem a tendência de fundo.  Isto favorece a integração afetiva e emocional entre os cônjuges e com a prole, além de oferecer melhores condições para a geração e educação dos filhos. Por fim, a família estável é capaz de dar assistência, de maneira continuada e eficaz aos seus membros mais fracos (crianças, idosos e portadores de deficiências).  Este ambiente favorece o florescimento de uma efetiva paz social. A respeito do valor da família fundada no matrimônio, Donati afirma que

a estabilidade e a força dos laços de quem se empenha no matrimônio são circunstâncias que aumentam a capacidade de redistribuição dos recursos familiares de acordo com uma partilha voluntária que realiza a equidade entre os que têm mais e os que têm menos, entre quem está saudável ​​e quem está doente, entre quem é mais forte e quem é mais fraco. Onde há uma maior instabilidade e fraqueza dos laços, maior é a busca de compensação numa base individual, o que ajuda o membro forte, mas não o fraco. (tradução nossa)[1]

Por isso, a família constitui o maior recurso humano e social disponível e é de interesse dos poderes públicos não desperdiçar esses recursos. A estabilidade na cooperação entre os sexos e as gerações constitui o terreno no qual se joga o grau mais ou menos civilizado de uma sociedade. Abrem-se, assim, amplos espaços para políticas sociais que focalizem a subjetividade social da família.
Cabe identificar quais formas familiares favorecem mais a paz social e a solidariedade, quais formas familiares têm como projeto, como finalidade própria, assumir a cooperação entre os sexos e entre as gerações. No entanto, muitos sinais indicam que essa cooperação não está sendo adequadamente avaliada e valorizada.
O moderno Estado ‘laico’ não deverá usar um critério religioso para avaliar as diversas formas de convivência familiar. Deve considerar quais formas de convivência resultam mais úteis à sociedade. Estas devem ser reconhecidas, encorajadas e sustentadas com base na avaliação das consequências positivas que produzem para a sociedade. Por isso, as medidas do governo para regulamentar as diversas formas de viver o afeto não devem descaracterizar a família fundada no matrimônio, assemelhando-a a qualquer tipo de convivência com base afetiva.
Desejo de Família
 Apesar dos numerosos sinais de crise no matrimônio, «o desejo de família permanece vivo – afirma o Papa Francisco na Exortação Apostólica Amoris Laeticia – especialmente  entre os jovens, e isto incentiva a Igreja». Como resposta a este anseio, “o anúncio cristão sobre a família é verdadeiramente uma boa notícia”. (cf. n. 201).
A exigência de amar e ser amado, que toda pessoa experimenta, está na origem do “desejo de família” que foi detectado pelas pesquisas em preparação aos últimos dois Sínodos. O desejo de família nasce da intuição de que a melhor resposta a essa exigência é a criação de uma aliança afetiva duradoura, de um vínculo que protege a relação amorosa da volubilidade dos sentimentos e dos afetos. Diversas respostas, que podem ser dadas às necessidades biológicas da sexualidade através de relações ocasionais, não conseguem atender às exigências acima recordadas.
A relação conjugal, destinada a durar no tempo, caracterizada pela reciprocidade afetiva, pela exclusividade e pela fidelidade, aberta para gerar filhos e educá-los, responde melhor às exigências do coração humano. A dimensão do tempo exige a criação de uma aliança conjugal que configura certa estabilidade afetiva, permite vencer o medo da solidão, cria o ambiente adequado para gerar filhos e dá coragem para enfrentar circunstâncias adversas que eventualmente se apresentem ao longo da vida.
Homem e Mulher Ele os criou.
Quando acabou de ser criado por Deus, Adão se deparou com a sua solidão originária. Passando em resenha todos os animais, não encontrou nenhum que lhe fosse parecido, que servisse para sua companhia. Isto quer dizer que o ser humano vive num patamar diferente dos animais, tem exigências infinitas de liberdade, de justiça, de verdade, de amar e ser amado. Então Deus Disse: “não é bem que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda.” (Gn 2,18).
No livro do Gêneses lemos: “Façamos o homem como nossa imagem, como nossa semelhança”. (Gn 1, 26) E logo depois acrescenta: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus Ele o criou, homem e mulher ele o criou” (Gn 1, 27).
O Papa São João Paulo II, no início da Mulieris Dignitatem, pergunta: “Trata-se de compreender a razão e as consequências da decisão do Criador de fazer existir o ser humano sempre e somente como mulher e como varão” (MD, 1)[2]. Ele quer sublinhar o fato de que a diferença sexual não é uma invenção dos homens, é fruto da decisão do Criador e corresponde ao seu desígnio para que o homem não esteja só, para que em todas as circunstâncias ao longo de todo o percurso de sua existência possa contar com uma companhia que lhe dá apoio e solidariedade, para encontrar resposta ao desejo infinito de amar e ser amado.
Desde o início da criação um é feito para o outro. A própria constituição corpórea contém uma carência, comporta a necessidade que cada um tem da outra pessoa, a diferença indica uma complementaridade. A sexualidade revela que a pessoa não vive para a solidão, mas para o encontro e para o amor vivido como dom recíproco de si, para a comunhão.
“À imagem de Deus Ele o criou”: imago Dei
A estrutura do ser humano está relacionada com o seu ser “imagem e semelhança de Deus”.[3] (Gn 1, 27). Durante séculos, a semelhança do homem e da mulher com Deus foi atribuída à inteligência humana e à sua capacidade de amar, semelhantes a Deus que é infinito amor e infinita inteligência. Mas, o Papa São João Paulo II entende que a pessoa humana é imagem e semelhança de Deus também por outro aspecto: Deus é comunhão trinitária (um só Deus, três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo). A pessoa humana é chamada a ser comunhão, a realizar-se, a vencer a solidão, a encontrar felicidade, imitando na sua vida terrena a comunhão divina, vivendo em relação de amor uns com os outros e com a SS Trindade.
Em Puebla de los Ángeles, em 1979, São João Paulo II afirmou: “Nosso Deus não é uma solidão e sim, uma família, porque nele existem a paternidade, a filiação, e a essência da família que é o amor. Este amor, na família divina é o Espírito Santo. Assim, o tema família não é estranho à essência divina”.[4] E na Carta às Famílias, afirma: “À luz do Novo Testamento é possível descobrir que o modelo originário da família deve ser procurado em Deus mesmo, no mistério trinitário de sua vida” (CF 6).[5]
O ser humano, “unidade de dois”, verifica dentro de si uma carência que o abre para o outro, para o diferente, fora de si. Isto quer dizer que a condição para a realização da pessoa é ser para o outro”. O desejo de felicidade pode encontrar a própria satisfação somente através do outro[6].   A família, fundada no matrimônio, corresponde ao desígnio de Deus e permanece como o espaço onde as exigências humanas encontram maior correspondência, isto é, são acolhidas, valorizando os diversos aspectos das relações entre os sexos, sem que nenhum deles fique excluído. Nesse sentido, na família, na relação esponsal, realiza-se o paradoxo da condição humana: “o meu eu és tu”, como Romeu declara a Julieta[7].
A comunhão, como disse São João Paulo II, é vocação e tarefa (MD, 7)[8]. A comunhão entre pessoas, que se concretiza na família, prepara uma morada adequada para o homem, para a mulher e para os filhos que gerarem. A vida de comunhão é por sua natureza expansiva e cria ambiente de solidariedade, de participação entre os sexos e entre as gerações. Trata-se de um chamado, isto é, do caminho para a mais plena realização pessoal, de acordo com o desígnio do Criador. Trata-se também de uma tarefa, isto é, de um empenho das pessoas para edificar, dia a dia, relacionamentos de aceitação recíproca, acolhimento, perdão, disponibilidade para recomeçar, esperando a plena realização no final do caminho, não necessariamente a cada passo dado.
No sacramento do matrimônio, a plenitude do amor: communio personarum
 A comunhão trinitária está na origem deste caminho que tem como dinâmica o dom de si ao outro.[9] O amor de Deus é doação, não somente na criação, mas principalmente no dom de si mesmo mediante o Filho – o Verbo encarnado. Trata-se de um dom na mais radical e absoluta gratuidade, que tem no sacrifício da cruz uma medida ilimitada. Toda a vida terrena de Jesus foi um doar-se aos outros. Quando Jesus, na última ceia disse: “Tomai e comei, isto é meu corpo que é dado por vós” exprime o dom total de si na eucaristia e na cruz.
O casal cristão, unido na fé, participa do acontecimento do amor (infinito e eterno) que se faz carne e que se doa na Eucaristia à humanidade decaída. Pelo sacramento do matrimônio, o casal vive imerso na fonte do amor que é o coração trespassado de Cristo e participa do seu dom esponsal para a Igreja, de modo que esta nascente de amor divino chega ao coração do amor conjugal. O sacramento do matrimônio torna presente a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, seu amor vitorioso sobre o mal e a morte que, quando reconhecido e acolhido, atua no ambiente da vida familiar. O amor do casal é, assim, assumido no amor de Cristo e da Igreja. Paulo indica este mistério quando afirma: “Maridos, amai vossas mulheres como Cristo também amou a Igreja e se entregou por ela”. (Ef 5, 25). Esta dinâmica origina relações familiares que são constitutivas na geração de filhos e significativas como fonte de beleza e de satisfação no quotidiano.
A pessoa humana, imagem e semelhança de Deus, recebe a vida como dom e é chamado a fazer dom de si mesmo. O Concílio Vaticano II (GS 24) afirma: “O homem o qual sobre a terra é o único que Deus quis por si mesmo, só pode  se encontrar plenamente no dom sincero de si. Dessa maneira, a graça matrimonial enriquece as relações familiares, a relação entre marido e mulher, a paternidade, a maternidade, a filiação, a fraternidade, mediante a efusão do Espírito Santo (FC 15).
*Bispo de Camaçari, presidente do Regional NE3 da CNBB,  diretor do Pontifício Instituto Teológico São João Paulo II para a Ciência do Matrimônio e da Família Seção brasileira
[1] DONATI, P. La politica della famiglia: per un welfare relazionale e sussidiario. Roma: Edizioni Cantagalli, 2011. p. 41.
[2] JOÃO PAULO II. Mulieris Dignitatem. Op. Cit., p. 7.
[3] JOÃO PAULO II. Familiaris Consortio. Op. Cit. Ver especialmente a segunda parte; páginas 20-31.
[4] Insegnamenti di Giovanni Paolo II, Editrice Vaticana, vol. II, n. 1, p. 182.
[5] GIOVANNI PAOLO II. Lettera alle Famiglie. Editrice Vaticana, 1994.
[6] SCOLA, A. Il mistero nuziale, 1… op. cit. p.345
[7] SHEAKSPEARE, W. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995. v.1, p.289-354.
[8] Cf. JOÃO PAULO II. A Dignidade e a Vocação da Mulher. Mulieris Dignitatem. São Paulo: Paulinas: 1998,  p. 26.
[9] OUELLET, Marc. Divina Somiglianza. Antropologia trinitaria della famiglia. Roma: Lateran University Press. 2004. Dello stesso Autore, Mistero e sacramento dell’amore. Siena: Cantagalli, 2007.

LITURGIA DIÁRIA